sábado, 15 de fevereiro de 2020

post vitae

Obra completa reúne várias criações do mesmo autor; 
obra de vários autores jamais se completa.

Um escrito pode ter vida longa, mas assim como a vida humana, 
carrega a incerteza da duração.

Com calma e paciente prazer ajusta-se uma palavra adiante de outra. 
A escrita nasce de uma vontade ou necessidade 
de imprimir em um papel ou tela 
o que não se exprime pela boca; 
ou da pretensão de tornar a palavra mais duradoura do que a pessoa.

Tudo o que está escrito aqui pode ser verdade.
Apenas alguns fatos ainda não tiveram a oportunidade de acontecer.

*;) piscando

50 publicações para celebrar 50 anos de vida

Riquistão

Amoral Neto, o repórter, filho de Amoral Filho, o banqueiro, é alguém contra a hipocrisia do politicamente correto! Sua utopia é separar os ricos dos pobres, porque esse negócio de misturar raças diferentes não dá coisa que preste. Afirma ele não ser preconceituoso, apenas realista, que é só imaginar o resultado do cruzamento de uma girafa com um pudle para ver que cada macaco deve ficar no seu galho e cada galho na sua árvore.   
Daí foi um caminho curto à ideia de criar um refúgio paradisíaco para si e para os iguais a si. 

Onde seria? Na África nem pensar! Há séculos as principais atividades lá são as guerras civis, com seus massacres, escravização uns dos outros, estupros e saques. Toda hora iria aparecer alguém com aquele ar de coitadinho – e uma pedra, pedaço de pau ou facão na mão – para pedir uma xícara de açúcar, uma tonelada de arroz, caminhões com carne, carregamentos de remédios ou algo parecido. Como seria imprudente negar algo para esse tipo de gente, o relacionamento seria desgastante para o bolso e para a paciência, pois a fome morta no almoço já ressuscitou na janta, e seria uma caridade eterna, aquele ajudar a quem não se ajuda. 

Não se poderia fazer como os judeus, que são ricos, comprar um pedaço de terra e fundar ali uma nação boçal e soberana? Os judeus, com excesso de dinheiro tiveram escassez de juízo e compraram um terreno mal localizado, com uma péssima vizinhança – barraqueira e vingativa – que vive jogando pedras e mísseis para confortar suas insatisfações, e acabou desvalorizando o investimento e perdendo o glamour do local no meio de tanta baixaria.

Uma ilha no Caribe seria o local óbvio... Tentou comprar Cuba e pretendia usar os nativos como empregados (afinal alguém tem que meter a mão na massa para o negócio funcionar). Ademais, a população local já está acostumada e até parece achar charmoso viver no limite da miséria; seria até uma caridade para aquela ilha-prisão. Mas os tiranossauros rex do governo não aceitaram o negócio pois preferiam continuar mastigando a própria mixaria do que lamber a prosperidade alheia.

Amoral não desistiu de seu sonho dourado a ouro e mandou construir uma ilha/condomínio no mar internacional do Caribe, que batizou de Riquistão (para os que ricos estão). 

Como se sabe, ao invés de reunir os amigos, rico gosta mesmo é de impressionar e humilhar os rivais. Na ilha seriam permitidas apenas casas com no mínimo de três andares, vagas para cinco carros, três lanchas e dois helicópteros. Uma área de lazer com campos de golfe, quadras de tênis, termas e restaurantes internacionais (tudos nos plurais) faria o papel de polo confraternizador. Para refrear o pendor exibicionista tão comum aos endinheirados, só seriam permitidas festas na ilha em uma única área, Le Lieu (O Lugar, em francês), com reserva antecipada paga em ouro onde os anfitriões poderiam desperdiçar recursos sem remorso, que isso é sentimento pequeno-burguês.

A ilha foi erguida com a base de pedras vindas exclusivamente das cordilheiras do Tibete (devidamente abençoadas, pedra a pedra, por monges de aluguel), a terra foi trazida da Europa (para se manter o pedigree de onde se pisa) e as areias das praias – habitat natural dos moradores da ilha – foram importadas da Califórnia e Ibiza, para evitar possíveis contágios com doenças pobres, além serem as únicas à altura, em status e tradição, de ter contato com os pés desnudos dos riquistãomesmos (nomeação dos moradores de Riquistão).

Pronta a ilha, com seus portos e aeroportos, bancos e boates, mimos e consumismos, começou o seleto processo de escolha dos afortunados. Só poderiam morar lá aqueles que, de tão podres de ricos, já estariam mesmo até em decomposição (física, moral, ou ambas), obviamente mantendo as aparências com o que há de mais moderno e oneroso.
Afirma Amoral que nem heróis nem vilões, os ricos são apenas pobres com dinheiro, por sorte ou uma dura e constante luta para chegar lá... Não se deve discriminar os ricos, pois isso além de ser feio, pode render um processo judicial com no mínimo três advogados e um juiz muito bem pagos para resolver o caso. 
O chique para os riquistãomesmos é falar em língua estrangeira para parecer que se possui uma cultura que não se tem. Afinal de contas, depois de dar um duro danado para possuir dinheiro, ainda tem que possuir cultura? Aí já é abuso! O negócio é possuir o fundamental, o resto se acerta por si mesmo.

Mas como toda utopia tem uma patologia, a perfeição de Riquistão não suportou por muito tempo a ostentação! Assim como entre os comunistas há aqueles que querem ser mais iguais do que outros, os endinheirados têm intolerância a não sentirem-se superiores aos demais e criou-se uma segregação com base na qualidade (antiguidade) e quantidade (valor líquido descontadas as dívidas não pagas) das fortunas. 
Das batalhas judiciais na guerra de vaidades que se seguiu surgiu o Alto Riquistão e o Baixo Riquistão, com as fronteiras vigiadas por exércitos de seguranças privadas, fofoqueiros interesseiros e comunicadores patrocinados. 
Lá estão agora os autodenominados altoriquistãos sentindo-se incomodados com a presença dos denominados baixoriquistãos, que não se reconhecem como tal e, inconformados, estão na articulação da patrocinação daquela que pretendem ser A Revolução para Humilhar Todas as Revoluções (tudo em maiúsculo mesmo, que é para mostrar a que vieram), onde pretendem provar do que o dinheiro é capaz.

O clima está quente e tenso no Riquistão, demandando muito ar condicionado e massagens. Enquanto isso, Amoral Neto já está articulando a construção de um condomínio na Lua, para onde pretende se mudar, aliviar o peso dos problemas e apreciar os problemas dos outros de cima.

Vingança

Dias atrás estava andando pela rua e fui surpreendido com a visão de escombros onde há pouco havia uma charmosa casa. Ela foi totalmente derrubada, em poucas horas, por um trator! Vi, incrédulo, na pequena montanha de entulhos, pedaços de janela, colunas e portas, tudo cercado pelo muro baixo ainda intacto, onde depois colocaram fitas amarela e preta, como se isola a área de um crime onde se encontra um cadáver. Só que ali não haveria investigação nem punição. 
Acredito que a maioria das pessoas que passou pelo local nem se lembra de como era a casa que agora jazia em silêncio, já integrante de um passado recente. Localizava-se na principal avenida da cidade e tinha uma arquitetura singular – no estilo marajoara de Art Déco – em minha opinião mistura de estilo gótico com indígena, cercada por um muro tão baixo que uma criança o pularia sem dificuldade. As paredes externas, em seus dois andares, eram repletas de símbolos para mim intrigantes, com janelas estreitas e altas que lembrava as dos castelos que via nos livros de minha infância. 
Mesmo sabendo que sempre foi habitada, em mais de vinte anos nunca vi nenhum morador entrando ou saindo, muito raramente uma janela aberta. Nunca a vi sendo pintada, mas suas paredes pareciam conservar a cor inalterada. Um mistério!
Agora este fim melancólico e abrupto, sem anúncios de venda... uma demolição rápida e clandestina para escapar do processo de tombamento como patrimônio arquitetônico do município, que estava em andamento e próximo à conclusão.
Houve alguns protestos espontâneos, como cercar o muro com uma longa faixa preta em sinal de luto, dias depois, algum inconformado colocou uma pequena casa sobre os escombros com uma placa ao lado onde estava escrito "Derruba essa!". Foram publicados artigos indignados na imprensa local afirmando ser um desrespeito a demolição dessa casa. Seguiram-se denúncias e queixas na mídia sobre a forma como foi derrubada a casa, classificada como inescrupulosa ou desleal, seguindo-se debates sobre os direitos e deveres de donos de imóveis considerados históricos, em contrapartida com a identidade e o direito da comunidade. 
Fato é que os escombros continuavam lá enquanto seguia a batalha judicial, passados pouco mais de dois meses, mostrando a intimidade e a vergonha de um ato onde todos saíram perdendo. Perdeu o proprietário, que antes tinha uma bela casa e agora tem ruínas e inimigos, com embargo de construção. Perdeu a comunidade, que ficou sem, no lugar onde vive, uma bela obra arquitetônica para contemplar e que era referência para estudantes e turistas.
Olhando os escombros, pensei que as casas antes eram derrubadas por homens com marretas ao longo de alguns dias, agora somem sob as lagartas de um trator em questão de horas, sem tempo para que possamos lembrar como nossa história e a dessas construções se fundem, sem consideração pelo futuro priorizando o lucro presente; sem uma perspectiva global, abafada pela individual.

Estas considerações podem parecer piegas para muitos, bem sei. Também sei que casas não são criaturas vivas, mas acredito que são criações humanizadoras na medida em que permitem um contato com a natureza em seus jardins e quintais, e incentivam a individualidade através de possibilidade de liberdade e criação ao invés do individualismo tão comum nos apartamentos.

*

Nos quatro meses que se seguiram, mais duas casas foram demolidas nas proximidades de onde eu moro. Nenhuma demolição causou polêmica, todas foram muito rápidas e só foram percebidas pelos vizinhos mais imediatos. Eu sentia que cada demolição deixou a cidade mais pobre. Todas eram casas em bom estado de conservação, podendo ser habitadas por gerações, mas sucumbiram diante da ganância imobiliária, cada vez mais eficiente e impessoal. Em pouco tempo, onde antes havia uma casa, só existia terra ou lama. Tratores e caminhões arrancaram e levaram as raízes das plantas e das pessoas que lá habitavam. Existe cada vez menos a expressão "aquela é a casa da família tal". Perde-se a referência do local onde existimos. Hoje a expressão teria que ser adaptada para "aquela é a janela da família tal". Se o prédio for grande, daqueles com mais de dez andares, até mesmo a localização da janela se torna um processo confuso e difícil na massificação das colmeias humanas onde se reside.

Casa é símbolo de individualidade e apartamento é símbolo de coletividade. Cada qual com suas vantagens e desvantagens, mas eu prefiro as casas, que permitem a passagem de claridade e ventilação para si e os vizinhos, não essas muralhas de concreto e vidro, feitas por prédios que se encostam uns nos outros, barrando e sol e o vento, induzindo à artificialidade das lâmpadas e ventiladores para se habitar com um mínimo de conforto e dignidade.
Ao passar pelo terreno de uma dessas casas recentemente abatidas, rodeado pela precária cerca de compensado com o símbolo e nome de uma construtora, fiquei enxergando pela memória, no espaço agora vazio, a fachada daquela casa que não mais existia. Pensei como não conseguia mais ver onde foram parar as janelas que me testemunharam criança correndo pelo asfalto em sua frente jogando futebol com um grupo de amigos. As mesmas janelas que por diversas vezes me flagraram correndo para a mercearia próxima com algumas moedas na mão para comprar o chiclete que depois encheria minha boca de obturações. Quando brincávamos de pique-esconde, lembro de entrar apressado pelo jardim de alguma das casas da rua onde morava e me deitar na varanda, sendo por duas ou três vezes flagrado pela dona da casa que abria sua porta e, vendo que se tratava  de uma brincadeira das crianças locais, fechava a porta em conivente silêncio.

Tenho ótimas lembranças de habitar numa casa, que associo com a possibilidade de liberdade e criatividade! No enorme quintal da casa onde morava durante minha infância havia pés de framboesa, figo, mamão e muitas bananeiras que subi várias vezes para colher seus frutos ou escapar de surras da minha mãe, quando aprontava alguma. Nesse quintal, com minha espada de plástico, tampa de lata de lixo como escudo e uma toalha amarrada no pescoço como capa, com os pés no chão, sem camisa e um pequeno calção, dizimei diversos pés de taioba nas guerras travadas durante as tardes de férias escolares.
Naquele imenso quintal de terra, meu intelecto de 10 anos de idade concebia traçados de circuitos de corrida de carros feitos com uma pequena enxada onde tampinhas de refrigerante disputavam intensas e longas corridas, sendo necessário paciência e persistência para me levar ao banho já no início da noite para tirar a terra do corpo e das roupas. Mesmo assim, por duas ou três vezes, foram disputadas corridas noturnas iluminadas por uma lâmpada da varanda dos fundos da casa.
A engenharia não era um trabalho desenvolvido somente por mim. Os cães que sempre tínhamos foram, ao longo dos anos, cavando túneis entre as raízes das plantas que cercavam o barranco e o muro do vizinho e por ali corriam alucinados quando fugiam de um banho ou estávamos brincando. Os filhotes das ninhadas caninas também gostavam desses túneis para fugir como lugar de descanso.
Perto das bananeiras havia um barranco separado da casa por uma cerca de bambus. Ao cruzar o improvisado portão dessa cerca eu entrava em um mundo de aventuras mais emocionantes, cheias de perigos imaginários. Ali, no início de cada férias escolares, construía uma cabana com bambus, cavando o chão com uma pequena enxada e faca. Cobria o teto com as folhas que cortava das bananeiras. Aquela cabana apoiada no barranco era minha base para conquistar as distâncias pelo terreno em aclive até a rua de cima, quando reunindo minha coragem de então, armado com minha espada de plástico e a tampa branca da lata de lixo como escudo – além de um estilingue e o bolso cheio de mamonas para minha defesa em caso de uma retirada estratégica – desbravava o mato denso com seus sons misteriosos e amedrontadores, pequenos insetos e vegetação desconhecidos. Por duas vezes minha expedição venceu a vegetação densa e o terreno acidentado e cheguei na "longínqua" rua de cima, sentindo-me um verdadeiro Marco Pólo descobrindo novas terras, com seus moradores estranhos. Ficava então ali observando e sendo observado e quando me sentia ameaçado ou entediado entrava novamente no mato para o caminho de volta. O barrando não devia ter mais do que cinquenta metros de vegetação densa e terreno acidentado, mas na época parecia-me ter percorrido muitos quilômetros.

*

As ruas vão perdendo o charme e personalidade do conjunto de suas casas e jardins sendo substituídos pelas portarias dos edifícios. O espaço e liberdade proporcionados pelos quintais, e possibilidade da construção de um andar superior para abrigar uma nova geração da família ou espaço para realização de atividades profissionais ou artísticas, tudo perdido, comprimidos nos estreitos corredores e reprimidos nos restritivos regulamentos do condomínio, esta eterna taxa de aluguel do imóvel próprio, preço que se paga para ter a autonomia diminuída em prol da comodidade.
No espaço da terra ocupada pelos prédios germina apenas a padronização de possibilidades nos limites do coletivo.

Tenho o desejo de presenciar ou ter condições de um dia promover a honrosa e simbólica vingança de realizar a demolição de um prédio para construir uma casa em seu lugar!


Porta de banheiro



Algumas frases que vi em paredes e caminhões me pareceram interessantes a ponto de escrevê-las para não esquecer. 
São ditados ou pensamentos que considero instigantes ou engraçados.


A consciência dilui em álcool. 

A esperança é o fôlego da vida.

A gente colhe aquilo que planta.

A vida é dura para quem é mole.

Alegria de palhaço é ver o circo pegar fogo. 

Amor com amor se paga.

Aproveita macacada que amanhã não tem mais nada.

As letras grandes dão e as pequenas tomam.

Avó é mãe com açúcar.

Avô é pai em férias.

Barriga inchada não é fartura. 

Boas cercas fazem bons vizinhos.

Cada qual com seu igual.

Camarão que dorme a onda leva.

Casa onde não tem pão tem confusão. 

Coração dos outros é terra que ninguém pisa.

De boas intenções o inferno está cheio.

Dinheiro na mão escorrega que nem sabão. 

Dinheiro não compra felicidade, mas aluga conforto.

Muito ajuda quem não atrapalha.

Não crie cão se te falta pão. 

Não há mal que perdure ou dor que não se cure. 

Não leve a vida tão a sério, afinal não sairemos vivos dela.

O dinheiro compra a cama, mas não compra o sono.

O gosto da comida depende do tamanho da fome.

Para quem não tem nada, metade é o dobro.

Quando perder toda a esperança, procure-a no fundo dos olhos de uma criança.

Quem corre cansa, quem anda alcança. 

Quem fala demais acaba mordendo a língua.

Quem não tem pata de elefante não ruge como leão.

Quem não usa a cabeça cansa os pés. 

Quem trabalha naquilo que gosta está sempre de férias.

Quem vive para a essência não se prende a aparência.

Rapadura é doce, mas não é mole não.

Se valesse gritaria, porco não morria. 

Somos senhores do que ouvimos e escravos do que dizemos.

Presente pra gente

O instante vigente
que foge fugazmente
é a ânsia urgente
da existência da gente.

O tempo de fazer
é a hora de viver, 
o tempo de esquecer
é o momento de morrer.

Recordar o que foi
é esquecer do agora. 
Planejar o que será
e a oportunidade vai embora.

Necessário é entender o verbo corretamente:
Passado de presente,
Presente do presente, 
Futuro de presente.

Refúgio

Sempre fora uma pessoa introvertida e à medida que os anos passavam foi fechando-se dentro de si cada vez mais. Morava em um apartamento, nem grande, nem pequeno, em um pequeno prédio espremido entre outros prédios um pouco maiores, em uma região da cidade que no passado foi considerada nobre e gradativamente foi-se desvalorizando, tornando-se cada vez mais melancólica e esquecida.
Apesar do abafamento causado pela ausência da circulação de ar  característica do lugar  acostumara-se a morar neste local, pois tudo que precisava para viver não estava a mais de quatro quarteirões de distância, evitando grandes esforços. No entanto, incomodava-lhe consideravelmente, o barulho variado e alto que vinha da rua até altas horas da noite, o ar carregado dos escapamentos dos carros e as calçadas sempre cheias de pessoas que lhe pareciam feias e hostis. 
Por diversas vezes já pensara em mudar-se daquele lugar, mas por comodismo adiava a decisão para um futuro que nunca chegava. O apartamento em que vivia tinha um ar ainda mais estagnado que o ar abafado da rua. Os móveis antigos, da época de seus avós, disputavam o congestionado espaço dos cômodos com eletrodomésticos modernos e a decoração comprada por seus pais enquanto estes ainda eram vivos.
A leitura era sua ponte com o mundo. Paixão antiga, cultivada com carinho e sem maiores pretensões desde os tempos de escola, onde tinha dificuldade de se relacionar com pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo e até mesmo com o próprio sexo. Com a soma de cada pequena decepção ao longo da vida foi adquirindo mais gosto pelas palavras do que pelas pessoas, afinal as folhas estavam sempre ali, aguardando submissas e pacientes, sem críticas nem cobranças.
Sem se dar conta passou de uma posição apenas passiva para ativa no seu pacto com a arte de escrever. Primeiro depositava seus sentimentos e ideias em folhas de cadernos, que guardava com um cuidado onde existia um misto de vaidade e medo. Depois, deixando-se conduzir pela modernidade, comprou um computador e passava horas digitando suas aventuras fictícias, decepções e desejos. As folhas e telas em branco sempre tiveram um estranho charme sedutor, jardim de possibilidades onde os únicos limites eram os de suas capacidades. Ambiente que se transmutava de deserto estéril de ideias em nuvens fluidas de inspiração e vice-versa.
Não possuía o que se pode chamar de biblioteca, uma vez que não reservara nenhum cômodo em seu apartamento unicamente com a finalidade de acolher seus amigos livros. O que possuía era uma improvisada estante de tijolos e tábuas de madeiras que ocupava uma parede de seu quarto e, depois do falecimento de seus pais, como passara a morar só, mudou-se para o quarto destes, desmontou sua antiga cama e com mais uma estante improvisada ocupou duas paredes de seus antigo quarto.
Comprava revistas e livros novos nas bancas perto de onde morava, mas o que realmente falava fundo à sua alma era o que comprava em lojas de usados. Identificava-se um pouco com os livros e revistas descartados e esquecidos, com seus cheiros peculiares e suas pequenas imperfeições. Sentia-se também vítima do abandono e da incompreensão do valor que possuía. Gostava de passar horas garimpando nos "sebos" pequenos tesouros a preços mais acessíveis, e não conseguia conter uma ponta de indignação e rancor contra aquelas pessoas que descartavam livros ou revistas com determinadas figuras com excelente qualidade de impressão, uma edição com comentários adicionais do autor ou outras pequenas diferenciações. Livros maiores, com capas duras e grossas, transmitiam-lhe uma particular sensação de segurança.
Às vezes, por falta de espaço nas estantes, resolvia fazer uma triagem na sua coleção de livros e escolhia alguns para vender, pois até seu antigo guarda-roupa já se encontrava quase que totalmente tomado por livros e revistas que não cabiam nas lotadas estantes. Outras vezes resolvia que iria organizar seus livros por ordem alfabética dos títulos, mas, passado algum tempo, decidia que seria melhor arrumá-los de acordo com os nomes do autor, só para depois reorganizá-los por ordem alfabética. Resistia à tentação de reorganizá-los por ordem cronológica de compra. 
Não era raro arrepender-se de ter vendido um determinado livro e ir às lojas para comprá-lo novamente. Por duas ou três vezes adquirira exatamente o mesmo livro que havia vendido tempos atrás, e sentia-se como que redimindo a injustiça cometida com um antigo amigo. E assim os meses passavam transformando-se em anos.
Na mocidade fizera o possível para ter uma vida social. Chegou a ter rápidos casos amorosos superficiais – que raramente duravam mais do que seis meses – e um pequeno círculo de amigos, que se estagnou com o passar do tempo e diminuía a cada mudança por trabalho ou casamento, perdendo finalmente a afinidade e o contato com os poucos que restaram. Vivia de uma pensão deixada pelo pai que lhe permitia uma vida simples e confortável.
Além da leitura, passava o tempo no computador, ouvindo música ou vendo televisão. Ocasionalmente tinha vontade de ficar olhando as pessoas pela janela, mas se incomodava com o fato dos vizinhos dos prédios em volta observar sua intimidade.
Comparando a vida com os livros considerava a sua mal estruturada, amargurada e tediosa, com personagens ruins e cenários caóticos. Além disso, o enredo era de gosto duvidoso. Já nos seus livros tudo fluía de forma muito mais interessante. Mesmo porque, depois de algum tempo, só lia os livros que já conhecia e gostava. Estórias inteiras e os nomes de todos os personagens foram decorados. Sentia-se com uma vaga intimidade com muitos deles, como se fossem amigos de mocidade que há muito não se visitassem. Possuía muito mais livros do que tinha capacidade de ler e não estava com disposição para perder tempo em novas leituras que poderiam ser, também elas, uma decepção. De decepcionante já bastava a sua vida!
Sentava-se na cama ou no sofá, de preferência em algum canto longe da rua  onde o barulho do trânsito chegava como um som cada vez mais abafado e distante  e mergulhava naquele mundo conhecido e tranquilo. 
Um dia o síndico bateu sua campainha, afinal havia três meses que o condomínio estava atrasado e ninguém via, fazia tempo, a pessoa que morava naquele apartamento. Ninguém respondeu e outros três meses se passaram com visitas esporádicas do síndico à sua porta, sempre recebido com o mesmo silêncio. Foi convocada uma reunião do condomínio para decidir o que fariam, afinal, a pessoa, que morava só, poderia estar morta devido a uma doença ou um assalto, ou poderia ter se mudado ou viajado e não informara ninguém, e, neste caso medidas judiciais precisariam ser tomadas.
Chamaram a polícia informando sobre o caso e, na presença do síndico e mais duas testemunhas, os policiais arrombaram a porta do apartamento. Tudo estava em ordem, não demonstrando sinais de luta; todas as janelas estavam fechadas, com exceção da janela do quarto onde ficavam as estantes com os livros. O único acesso ao apartamento era a porta por onde entraram e que estava com as chaves na fechadura pelo lado de dentro. Revistaram todos os cômodos e todos os armários, onde foram encontradas, além de livros e cadernos, duas malas e muitas roupas, portanto a hipótese da viagem estava descartada. Alguns poucos livros estavam no chão da sala e do quarto com a janela aberta e as frutas na geladeira apodrecidas devido ao tempo que ficaram guardadas. A luz e a água haviam sido cortadas por falta de pagamento e, mediante pedido da polícia, semanas depois foi constatado que a conta no banco não tinha nenhum saque fazia seis meses, onde o dinheiro da pensão se acumulava. 
Era um mistério, a pessoa simplesmente havia sumido.
O condomínio concordou em pagar uma nova fechadura para a porta arrombada, gasto este que seria indenizado pela pessoa quando esta retornasse. Mas o tempo passou e não houve retorno, e como o valor do condomínio em atraso aumentava, pediram autorização na justiça para descontar da conta bancária onde a pensão se acumulava a cada mês, o valor devido ao condomínio. O síndico se sentiu na obrigação de procurar algum parente ou amigo mais próximo, mas não encontrou ninguém e, após três meses, desistiu.
O apartamento continua vazio até hoje, do mesmo jeito que foi encontrado pelos policiais, com suas contas pagas e suas janelas fechadas, móveis empoeirados e ar estagnado. Pequeno mundo isolado onde existe um livro de romance com capa grossa jogado no chão. Neste romance vive uma pessoa feliz. Mora numa casa de campo, com muito sol e uma brisa suave e constante que balança as folhas das muitas árvores que existem em volta. Sabe exatamente o que vai acontecer, pois já leu este romance muitas vezes. O tempo é usado para acompanhar a vida dos seus personagens queridos, seus amigos. Nada lhe surpreende ou ameaça e sabe sempre o que deve ou não fazer e dizer para agradar aos outros. 
Lá está agora, tranquilamente na cadeira da varanda com um livro sobre as pernas, refúgio num mundo ideal, protegido por grossas capas que não deixam passar o som de carros ou batidas na porta, que vinham de longe.

* * * * *

Baseado na crônica O homem sitiado, do livro O Nariz & Outras Crônicas de Luis Fernando Veríssimo.

Vento forte

Quando tinha ainda meus quinze anos fui passar as férias escolares na casa da empregada que trabalhava para minha família, em uma cidade perdida entre os morros de Minas Gerais.
Cidade pequena, que hoje penso não devia ter mais de três mil habitantes na ocasião. Daquelas típicas cidades mineiras, que possui uma única igreja com a praça em sua frente, local a partir de onde a cidade vai germinando e espalhando suas raízes pela terra em volta, subindo e descendo morros, alimentando-se de seus habitantes e do pequeno rio de água marrom que atravessava a região para manter sua existência. Desde muito novo já conseguia identificar esse quadrado a partir de onde nasciam as cidades mineiras: igreja, praça, prefeitura e rio. 
Iria passar lá uma semana e estava eufórico com a mudança de ambiente, uma vez que raramente viajava por ser de família modesta, com orçamento sempre apertado. Fora as casas, o local era composto de uma delegacia, a prefeitura que era também um misto de posto médico e fórum, a igreja com um pequeno cemitério ao lado e a única praça à frente, dois mercadinhos onde se vendia de tudo, alguns botequins e um campo de futebol. Um daqueles típicos locais onde os olhos dos vizinhos são a polícia e vive-se com o cuidado de através de suas condutas honrar o nome de sua família, pensando na dignidade dos antepassados e nas consequências para os filhos.
Das ruas de terra batida subia uma poeira fina, asfixiante, onde o espaço era dividido entre os habitantes, cães vadios, porcos, pássaros que ciscavam despreocupados a areia onde os cavalos transportavam pessoas e cargas em carroças. Em uma tarde já havia explorado aquele pequeno e acolhedor mundo. Aquela simplicidade fazia bem para minha alma, desejosa de tranquilidade. A cidade respirava lenta e quieta, na sua linda poesia de vida simples e rotineira, de pessoas com suas casas humildes e seus caminhos ásperos. 
No final da manhã do quarto dia que estava naquela cidade, aconteceu que o Nestor, um menino mulato de doze anos que eu conhecera no dia anterior, enquanto andava de bicicleta desequilibrou-se e caiu, batendo a cabeça no meio fio da calçada. Um fato comum este o de cair durante uma brincadeira. Quantas vezes eu já havia caído enquanto corria ou andando de bicicleta. Além de adquirir para toda a vida algumas cicatrizes, já havia quebrado o braço esquerdo, o dedo mínimo da mão direita e a perna direita nessas desventuras durante minhas aventuras. Mas para Nestor este foi um fato comum e final, ele morreu quase imediatamente à queda.
Após a inicial dificuldade em acreditar que fato tão corriqueiro pudesse ser tão fatal, surgiu o desespero e a revolta nas pessoas, a impotência diante de um fato já consumado. A tarde daquele dia foi gasta com os preparativos para o velório, que ocorreu durante a noite em uma pequena sala da igreja, anexa ao cemitério. À medida que as pessoas que trabalhavam nas lavouras próximas à cidade retornavam para suas casas e sabiam da triste novidade, tomavam um rápido banho para tirar do corpo o suor e o cansaço do dia de trabalho e dirigiam-se para a casa do falecido ou para a igreja, que no fim daquela tarde, no horário da missa, tocou longamente seu sino, avisando ou lamentando o fim daquela vida que acabava antes mesmo de mostrar porque começara. 
Durante o velório pensava se qualquer vida tem que ter um motivo para começar ou para terminar, mas a única conclusão que consegui chegar naquela ocasião foi que só as nuvens são eternas. Olhava aquela enorme lua quase cheia, clareando a noite como um sol pálido, cheia de luz e significados que não conseguia alcançar, e em meio às estrelas pequenas nuvens passavam baixo e rápido levadas pelo vento, fazendo tênues sombras nas árvores que cercavam o cemitério.
Observava aquela gente, mulheres envelhecidas antes do tempo, homens de rostos graves e pele ressecada pelo sol, quase todos de costas retas e andar compassado, de uma dignidade rústica e uma solidariedade simples. Parecia-me que toda a cidade era uma família, revezando-se nos pequenos consolos para aquele momento onde palavras não dizem nada. Durante toda a noite surgia no local do velório e na praça em frente um leite quente, café, bolo ou biscoito feitos na hora, um cobertor ou uma blusa, pessoas chorando ou com o olhar perdido em alguma lembrança e vi muitas pessoas abraçadas em silêncio. 
Terminadas as rezas, fechada a igreja, caladas as vozes, acesas as velas, no cansaço imenso a lua continuava crescendo na noite fria, e aos meus ouvidos aquele vento que continuava soprando sobre a cidade adormecida parecia alguém que assovia pedindo silêncio, momento para reflexão. 
O enterro foi no fim da manhã seguinte, num horário próximo ao que, no dia anterior, foi a queda fatal. Não pude desde então deixar de definir o tempo como algo abstrato e indescritível, quando pensei que um dia era o que separava uma pessoa descer na rua em cima de uma bicicleta e descer na cova dentro de um caixão.
Durante todo o dia ficou a cidade em um torpor, com as ruas mais vazias que o habitual e as pessoas falando mais baixo, fazendo mais lentamente seus afazeres e aproveitando com mais atenção os detalhes cotidianos, no típico período em que a morte vem nos lembrar a importância e fragilidade da vida, e que a maioria de nós, por hábito ou ignorância, nos deixamos depois de algum tempo tragar pela correnteza do ritmo automático de viver  focado aos detalhes e negligente ao essencial  só atentando novamente para este fato no próximo enterro, quando recomeça o mudo ciclo de alienação. 
No fim daquela tarde o progressivo escurecimento do crepúsculo parecia refletir meu estado de espírito. Naquele momento não sabia se existia menos luz fora ou dentro dos meus olhos. Olhando para o céu, naquela imensidão de tons entre o vermelho e o amarelo, chamou minha atenção um azul de uma tonalidade que eu nunca reparara antes. Um pedaço lindo e sedutor de céu, convidando para mergulhar naquela ilha de tranquilidade e esquecer do mar revolto agitando minhas emoções.
Andei por uma rua que subia um pequeno morro e sentei-me no chão, próximo a um formigueiro, contemplando de cima a pequena cidade. Ventava forte, um vento frio que contrastava com o clima morno do verão. Olhando para aquele formigueiro, junto com o vento que sentia no corpo, foi me envolvendo de uma forma traiçoeira e implacável, como o abraço de um inimigo, a percepção de como são minúsculas as pessoas, com suas tristezas e alegrias.
Parecia que aquele vento arrancava de mim uma inocência, jogando-a para o alto e longe no céu daquela tarde, em um passado agora, mesmo que próximo, inexoravelmente perdido, deixando pela primeira vez em minha forma de perceber o mundo uma desagradável consciência da fragilidade da minha vida e da futilidade dos meus desejos perante a indiferença dos fatos.
Sentia-me como uma daquelas formigas que passava ao meu lado em sua pressa de ir para o formigueiro, sem saber se trabalha para viver ou vive para trabalhar, sem consciência do que existe além da sua limitada capacidade de visão e compreensão, ignorante de si mesma e do que a cerca, sem enxergar que a qualquer momento eu poderia levantar o pé e esmagá-la.
Olhava a cidade e sentia o vento forte, indiferente à vida e à morte...

Filosofia de bar


A capacidade de condensar muita sabedoria em poucas palavras é uma arte! Estes são pensamentos e ditados com os quais esbarrei pela vida afora. Alguns são meus, outros foram modificados e incorporados de tal forma que hoje são parte da minha essência. São para mim um guia e um refúgio nas alegrias e tristezas e espero que também sejam úteis a você.

A alegria é o hidratante da alma.

A convivência cria laços, não necessariamente afetos.

A doutrinação é contrária ao desenvolvimento do espírito crítico.

A elegância raramente admite excessos.

A gentileza não começa no tratamento que dispensamos ao outro, mas no respeito que temos para nós mesmos.

A liberdade é algo que podem nos tirar, mas não podem nos dar.

A religião certa é aquela que te faz ser alguém melhor.

A riqueza mais segura é a pobreza de exigências.

A sociedade contemporânea parece, cada vez mais, caracterizar-se pelo excesso de informação e escassez de formação.

A união entre oportunidade e coragem resulta em algumas realizações e outras tantas contravenções.

A vida é curta, mas o final de semana é mais curto ainda, então curta a vida!

As fantasias, quando crescem, viram sonhos. Os sonhos, quando crescem sem controle, tornam-se pesadelos.

As piores disputas são aquelas em que todos os lados envolvidos têm razão.

Cada doido com sua mania.

Crescer é acumular proteções. Proteções para o frio, a chuva, a fome, o sofrimento. A vida está nesse fugaz momento que desperdiçamos sem perceber, não na expectativa do futuro, nem nas lições do passado.

Dê às pessoas uma segunda chance, mas não uma terceira.

Dessa vida não se leva nada, mas pode se deixar algo.

Determinação é encarar os obstáculos de frente até eles ficarem para trás.

Devemos ser condutores de nossas vidas, não passageiros.

Elogia-se em público e critica-se em particular.

Em algumas igrejas se paga os seus pecados com carnê mensal.

Felicidade é a consciência de estar em um bom caminho e poder continuar nele.

Gente amargurada só consegue chorar para dentro.

Gosto de quem gosta de mim.

Há pessoas tão desestimuladas que querem passar pelo tempo ao invés de influenciá-lo.

Há soltas pelo mundo palavras e teorias demais, que não dizem nada.

Inocência consiste em ter um coração ignorante, mas não tolo.

Jogo sem regras termina sem vencedor.

Justiça no Brasil é um teatro que se faz para validar os interesses de quem tem dinheiro.

Mais difícil do que seduzir várias mulheres é seduzir a mesma mulher várias vezes.

Muita opinião e pouca informação são uma péssima combinação.

Na consciência de que o tempo não pára é preciso ser seletivo em relação ao desejo, pois ser feliz é uma possibilidade que se dispõe no curto tempo entre o nascimento e a morte.

Na maior parte do tempo o ser humano fala muito e diz pouco.

Nas instituições educacionais pode prevalecer tanto a formação de cidadãos como a de súditos.

Não é a vida que é fácil comigo, eu é que sou fácil com minha vida.

Não faço questão de ser a pessoa mais rica do cemitério.

Não há ser humano tão miserável que não consiga explorar um vizinho mais miserável.

Não morra em vida, deixe para morrer na morte.

Não se pode voltar atrás e fazer um novo começo, mas pode-se começar agora e fazer um novo fim.

Ninguém sabe tanto que não possa aprender e nem tão pouco que não possa ensinar.

No teatro da vida somos atores embrutecidos interpretando nossos sonhos frágeis.

O divórcio é o imposto que se paga por acreditar no amor.

O fim não é a morte, mas o esquecimento.

O tempo não pára para descanso e na dá descanso para quem pára.

O ser humano tem fome de pão e compreensão.

Os amigos são a família que escolhemos.

Os velhos hábitos sobrevivem aos novos treinamentos.

Para algumas pessoas a vida acaba antes da morte.

Para que uma viagem seja boa a companhia é tão importante quanto o destino.

Para exercer as virtudes do espírito é necessário um mínimo de conforto material.

Política das 10 horas: Para não se tornar inconveniente não ligar ou visitar antes das 10 horas da manhã nem depois das 10 horas da noite, a menos que seja algo muito urgente ou importante.

Política é a arte de poucos enganarem muitos para que percam todos.

Prefiro colocar mais vida nos meus dias do que mais dias na minha vida.

Qualquer problema que possa ser ignorado não é um problema. Problema é aquilo que nos cerca de tal forma que não pode ser ignorado.

Quando a escuridão é muito grande até a sombra nos abandona.

Quando a gente pensa que sabe todas as respostas vem a vida e muda todas as perguntas.

Quando tudo estiver desmoronando preocupe-se apenas em manter-se respirando.

Quanto mais dividimos com os outros, mais nos multiplicamos.

Quem tem dinheiro não é quem gasta pouco, é quem ganha muito.

Quem tem língua forte não pode ter braço fraco.

Sabedoria é a prontidão da mente.

Se a vida é o sonho da morte, a morte é um sono sem sonhos.

Ser adulto é administrar a liberdade pela qual terá que se responsabilizar.

Ser livre não é o mesmo que ser libertado.

Somos animais racionais. É bom não esquecer, como a própria denominação deixa claro que, antes de sermos racionais, somos animais.

Sou mineiro ortodoxo, do tipo parado quase andando.

Temos duas orelhas e uma boca para nos lembrar que devemos ouvir mais do que falar.

Ter inimigos fora de si é perturbador, ter inimigos dentro da própria mente é apavorante.

Trabalhar muito é sinônimo de viver pouco.

Troquemos a revolução (violenta) pela evolução (pacífica).

Tudo e todos que atrapalham minha vida passarão, eu passarinho.

Uma crise é uma oportunidade de se fazer melhor.

Uma grande causa começa como um movimento, vira um negócio e finalmente degenera numa quadrilha.

Uma meia verdade é uma meia mentira.

Viver no futuro sem raízes plantadas no passado é alienar-se do presente.

Viver sem amigos é morrer sem testemunhas.

Conto de farpas

Sua vida era um conto de fadas farpas
em buscas de príncipes (des)encantados
que levavam a finais (in)felizes
e arrependimentos (des)motivados

Se revoltou e mudou

Envenenou a bruxa com um mamão
bateu na cara de um cavaleiro
e juntou-se com um dragão
tornando-se mãe solteira de sua solidão

No acreditar em ser este seu destino
(in)voluntariamente apagou seu brilho de outrora
remoendo (des)necessários receios
secava por dentro enquanto sorria por fora

Se resignou e amargurou

Sem cantos nem bailes, com (des)encantos e (des)esperança
(con)sumindo seus dias, envelheceu e embruteceu
(ger)minando seu espírito de princesa com crescente vingança
e o desejo de destruição das bruxas (re)conheceu

Amigos de copo e alma

Os dois amigos se encontraram no habitual banco de praça próximo ao trabalho pouco antes do crepúsculo. É a hora predileta dos boêmios, e também a mais detestável. Aproxima-se a noite, com suas promessas e expectativas, mas também com sua dúvida se não seria melhor ir para casa, com seu banho, jantar e sono de horas certas. A escolha de ambos é quase sempre a mesma, movida pelo impulso do prazer rápido e pelo medo da morte vazia.
Escolhem um bar próximo, sentam-se em uma mesa, chamam o garçom, que dependendo do tempo de freqüência já compartilha de algumas intimidades, sentando-se à mesa quando o movimento fraco assim o permite.
Um deles suspira:
– Tenho muita sorte, me casei com uma mulher incrível! Há anos ela me espera em vão para o jantar. Sempre me recebe lá pelas duas ou três horas da manhã, com um Engov e um abraço, então nos deitamos e fazemos sexo, como dois amantes gratos um pela presença do outro. De manhã ela ajuda o despertador a me tirar da cama e fica dormindo enquanto tomo um banho frio antes do café para acordar o corpo, já que a alma fica dormindo até esta hora em que nos encontramos. Ela fica lá, tomando conta do nosso filho, conversando e jogando carta com as amigas. Quando alguém lhe diz não compreender como admite tal situação, ela diz: Que posso fazer? Ele é assim. Quando o conheci, já sabia que era assim, e gostei dele justamente por isso. Se ele se tornasse um marido igual aos outros, deixaria de ser o homem que escolhi para mim.
– Pois eu – queixou-se o outro – não dei a sua sorte, embora tenha tentado encontrá-la em muitas mulheres. Todas acreditaram que minha forma de viver era um problema de solidão, bastando arrumar a casa para que eu não quisesse mais sair de lá. Não viam em mim o que sou, mas o que elas gostariam o que eu fosse.
– Pois minha esposa fica numa alegria danada quando resolvo ligar para ele e digo: Estou em tal lugar. Venha aqui e vamos beber juntos hoje. Ela só fica inquieta quando por algum motivo resolvo mudar de bar. Nesse caso, não descansa enquanto não a convido para visitar meu novo ambiente e ela possa verificar com seus próprios olhos que o lugar não é frequentado por mulheres.
– Brindemos então à sua felicidade! – falou o outro. Ergueram os copos.
– E também à sua solidão – emendou o primeiro – que também contém tesouros a serem descobertos e explorados!
Continuaram a conversar, compartilhando suas vitórias e misérias enquanto a noite e a vida iam envelhecendo. 
Por anos os mais sensíveis ou atentos poderiam procurar pelos dois amigos nas imediações daquela praça, onde ocasionalmente trocavam de bar pelos arredores do bairro, vivendo juntos o crepúsculo da vida.


Baseado na crônica A santa senhora
Livro: O homem na varanda do Antonio’s Crônicas da boemia carioca nos agitados anos 60/70
Autor: José Carlos Oliveira