sábado, 15 de fevereiro de 2020

Vingança

Dias atrás estava andando pela rua e fui surpreendido com a visão de escombros onde há pouco havia uma charmosa casa. Ela foi totalmente derrubada, em poucas horas, por um trator! Vi, incrédulo, na pequena montanha de entulhos, pedaços de janela, colunas e portas, tudo cercado pelo muro baixo ainda intacto, onde depois colocaram fitas amarela e preta, como se isola a área de um crime onde se encontra um cadáver. Só que ali não haveria investigação nem punição. 
Acredito que a maioria das pessoas que passou pelo local nem se lembra de como era a casa que agora jazia em silêncio, já integrante de um passado recente. Localizava-se na principal avenida da cidade e tinha uma arquitetura singular – no estilo marajoara de Art Déco – em minha opinião mistura de estilo gótico com indígena, cercada por um muro tão baixo que uma criança o pularia sem dificuldade. As paredes externas, em seus dois andares, eram repletas de símbolos para mim intrigantes, com janelas estreitas e altas que lembrava as dos castelos que via nos livros de minha infância. 
Mesmo sabendo que sempre foi habitada, em mais de vinte anos nunca vi nenhum morador entrando ou saindo, muito raramente uma janela aberta. Nunca a vi sendo pintada, mas suas paredes pareciam conservar a cor inalterada. Um mistério!
Agora este fim melancólico e abrupto, sem anúncios de venda... uma demolição rápida e clandestina para escapar do processo de tombamento como patrimônio arquitetônico do município, que estava em andamento e próximo à conclusão.
Houve alguns protestos espontâneos, como cercar o muro com uma longa faixa preta em sinal de luto, dias depois, algum inconformado colocou uma pequena casa sobre os escombros com uma placa ao lado onde estava escrito "Derruba essa!". Foram publicados artigos indignados na imprensa local afirmando ser um desrespeito a demolição dessa casa. Seguiram-se denúncias e queixas na mídia sobre a forma como foi derrubada a casa, classificada como inescrupulosa ou desleal, seguindo-se debates sobre os direitos e deveres de donos de imóveis considerados históricos, em contrapartida com a identidade e o direito da comunidade. 
Fato é que os escombros continuavam lá enquanto seguia a batalha judicial, passados pouco mais de dois meses, mostrando a intimidade e a vergonha de um ato onde todos saíram perdendo. Perdeu o proprietário, que antes tinha uma bela casa e agora tem ruínas e inimigos, com embargo de construção. Perdeu a comunidade, que ficou sem, no lugar onde vive, uma bela obra arquitetônica para contemplar e que era referência para estudantes e turistas.
Olhando os escombros, pensei que as casas antes eram derrubadas por homens com marretas ao longo de alguns dias, agora somem sob as lagartas de um trator em questão de horas, sem tempo para que possamos lembrar como nossa história e a dessas construções se fundem, sem consideração pelo futuro priorizando o lucro presente; sem uma perspectiva global, abafada pela individual.

Estas considerações podem parecer piegas para muitos, bem sei. Também sei que casas não são criaturas vivas, mas acredito que são criações humanizadoras na medida em que permitem um contato com a natureza em seus jardins e quintais, e incentivam a individualidade através de possibilidade de liberdade e criação ao invés do individualismo tão comum nos apartamentos.

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Nos quatro meses que se seguiram, mais duas casas foram demolidas nas proximidades de onde eu moro. Nenhuma demolição causou polêmica, todas foram muito rápidas e só foram percebidas pelos vizinhos mais imediatos. Eu sentia que cada demolição deixou a cidade mais pobre. Todas eram casas em bom estado de conservação, podendo ser habitadas por gerações, mas sucumbiram diante da ganância imobiliária, cada vez mais eficiente e impessoal. Em pouco tempo, onde antes havia uma casa, só existia terra ou lama. Tratores e caminhões arrancaram e levaram as raízes das plantas e das pessoas que lá habitavam. Existe cada vez menos a expressão "aquela é a casa da família tal". Perde-se a referência do local onde existimos. Hoje a expressão teria que ser adaptada para "aquela é a janela da família tal". Se o prédio for grande, daqueles com mais de dez andares, até mesmo a localização da janela se torna um processo confuso e difícil na massificação das colmeias humanas onde se reside.

Casa é símbolo de individualidade e apartamento é símbolo de coletividade. Cada qual com suas vantagens e desvantagens, mas eu prefiro as casas, que permitem a passagem de claridade e ventilação para si e os vizinhos, não essas muralhas de concreto e vidro, feitas por prédios que se encostam uns nos outros, barrando e sol e o vento, induzindo à artificialidade das lâmpadas e ventiladores para se habitar com um mínimo de conforto e dignidade.
Ao passar pelo terreno de uma dessas casas recentemente abatidas, rodeado pela precária cerca de compensado com o símbolo e nome de uma construtora, fiquei enxergando pela memória, no espaço agora vazio, a fachada daquela casa que não mais existia. Pensei como não conseguia mais ver onde foram parar as janelas que me testemunharam criança correndo pelo asfalto em sua frente jogando futebol com um grupo de amigos. As mesmas janelas que por diversas vezes me flagraram correndo para a mercearia próxima com algumas moedas na mão para comprar o chiclete que depois encheria minha boca de obturações. Quando brincávamos de pique-esconde, lembro de entrar apressado pelo jardim de alguma das casas da rua onde morava e me deitar na varanda, sendo por duas ou três vezes flagrado pela dona da casa que abria sua porta e, vendo que se tratava  de uma brincadeira das crianças locais, fechava a porta em conivente silêncio.

Tenho ótimas lembranças de habitar numa casa, que associo com a possibilidade de liberdade e criatividade! No enorme quintal da casa onde morava durante minha infância havia pés de framboesa, figo, mamão e muitas bananeiras que subi várias vezes para colher seus frutos ou escapar de surras da minha mãe, quando aprontava alguma. Nesse quintal, com minha espada de plástico, tampa de lata de lixo como escudo e uma toalha amarrada no pescoço como capa, com os pés no chão, sem camisa e um pequeno calção, dizimei diversos pés de taioba nas guerras travadas durante as tardes de férias escolares.
Naquele imenso quintal de terra, meu intelecto de 10 anos de idade concebia traçados de circuitos de corrida de carros feitos com uma pequena enxada onde tampinhas de refrigerante disputavam intensas e longas corridas, sendo necessário paciência e persistência para me levar ao banho já no início da noite para tirar a terra do corpo e das roupas. Mesmo assim, por duas ou três vezes, foram disputadas corridas noturnas iluminadas por uma lâmpada da varanda dos fundos da casa.
A engenharia não era um trabalho desenvolvido somente por mim. Os cães que sempre tínhamos foram, ao longo dos anos, cavando túneis entre as raízes das plantas que cercavam o barranco e o muro do vizinho e por ali corriam alucinados quando fugiam de um banho ou estávamos brincando. Os filhotes das ninhadas caninas também gostavam desses túneis para fugir como lugar de descanso.
Perto das bananeiras havia um barranco separado da casa por uma cerca de bambus. Ao cruzar o improvisado portão dessa cerca eu entrava em um mundo de aventuras mais emocionantes, cheias de perigos imaginários. Ali, no início de cada férias escolares, construía uma cabana com bambus, cavando o chão com uma pequena enxada e faca. Cobria o teto com as folhas que cortava das bananeiras. Aquela cabana apoiada no barranco era minha base para conquistar as distâncias pelo terreno em aclive até a rua de cima, quando reunindo minha coragem de então, armado com minha espada de plástico e a tampa branca da lata de lixo como escudo – além de um estilingue e o bolso cheio de mamonas para minha defesa em caso de uma retirada estratégica – desbravava o mato denso com seus sons misteriosos e amedrontadores, pequenos insetos e vegetação desconhecidos. Por duas vezes minha expedição venceu a vegetação densa e o terreno acidentado e cheguei na "longínqua" rua de cima, sentindo-me um verdadeiro Marco Pólo descobrindo novas terras, com seus moradores estranhos. Ficava então ali observando e sendo observado e quando me sentia ameaçado ou entediado entrava novamente no mato para o caminho de volta. O barrando não devia ter mais do que cinquenta metros de vegetação densa e terreno acidentado, mas na época parecia-me ter percorrido muitos quilômetros.

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As ruas vão perdendo o charme e personalidade do conjunto de suas casas e jardins sendo substituídos pelas portarias dos edifícios. O espaço e liberdade proporcionados pelos quintais, e possibilidade da construção de um andar superior para abrigar uma nova geração da família ou espaço para realização de atividades profissionais ou artísticas, tudo perdido, comprimidos nos estreitos corredores e reprimidos nos restritivos regulamentos do condomínio, esta eterna taxa de aluguel do imóvel próprio, preço que se paga para ter a autonomia diminuída em prol da comodidade.
No espaço da terra ocupada pelos prédios germina apenas a padronização de possibilidades nos limites do coletivo.

Tenho o desejo de presenciar ou ter condições de um dia promover a honrosa e simbólica vingança de realizar a demolição de um prédio para construir uma casa em seu lugar!


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