sábado, 15 de fevereiro de 2020

Vento forte

Quando tinha ainda meus quinze anos fui passar as férias escolares na casa da empregada que trabalhava para minha família, em uma cidade perdida entre os morros de Minas Gerais.
Cidade pequena, que hoje penso não devia ter mais de três mil habitantes na ocasião. Daquelas típicas cidades mineiras, que possui uma única igreja com a praça em sua frente, local a partir de onde a cidade vai germinando e espalhando suas raízes pela terra em volta, subindo e descendo morros, alimentando-se de seus habitantes e do pequeno rio de água marrom que atravessava a região para manter sua existência. Desde muito novo já conseguia identificar esse quadrado a partir de onde nasciam as cidades mineiras: igreja, praça, prefeitura e rio. 
Iria passar lá uma semana e estava eufórico com a mudança de ambiente, uma vez que raramente viajava por ser de família modesta, com orçamento sempre apertado. Fora as casas, o local era composto de uma delegacia, a prefeitura que era também um misto de posto médico e fórum, a igreja com um pequeno cemitério ao lado e a única praça à frente, dois mercadinhos onde se vendia de tudo, alguns botequins e um campo de futebol. Um daqueles típicos locais onde os olhos dos vizinhos são a polícia e vive-se com o cuidado de através de suas condutas honrar o nome de sua família, pensando na dignidade dos antepassados e nas consequências para os filhos.
Das ruas de terra batida subia uma poeira fina, asfixiante, onde o espaço era dividido entre os habitantes, cães vadios, porcos, pássaros que ciscavam despreocupados a areia onde os cavalos transportavam pessoas e cargas em carroças. Em uma tarde já havia explorado aquele pequeno e acolhedor mundo. Aquela simplicidade fazia bem para minha alma, desejosa de tranquilidade. A cidade respirava lenta e quieta, na sua linda poesia de vida simples e rotineira, de pessoas com suas casas humildes e seus caminhos ásperos. 
No final da manhã do quarto dia que estava naquela cidade, aconteceu que o Nestor, um menino mulato de doze anos que eu conhecera no dia anterior, enquanto andava de bicicleta desequilibrou-se e caiu, batendo a cabeça no meio fio da calçada. Um fato comum este o de cair durante uma brincadeira. Quantas vezes eu já havia caído enquanto corria ou andando de bicicleta. Além de adquirir para toda a vida algumas cicatrizes, já havia quebrado o braço esquerdo, o dedo mínimo da mão direita e a perna direita nessas desventuras durante minhas aventuras. Mas para Nestor este foi um fato comum e final, ele morreu quase imediatamente à queda.
Após a inicial dificuldade em acreditar que fato tão corriqueiro pudesse ser tão fatal, surgiu o desespero e a revolta nas pessoas, a impotência diante de um fato já consumado. A tarde daquele dia foi gasta com os preparativos para o velório, que ocorreu durante a noite em uma pequena sala da igreja, anexa ao cemitério. À medida que as pessoas que trabalhavam nas lavouras próximas à cidade retornavam para suas casas e sabiam da triste novidade, tomavam um rápido banho para tirar do corpo o suor e o cansaço do dia de trabalho e dirigiam-se para a casa do falecido ou para a igreja, que no fim daquela tarde, no horário da missa, tocou longamente seu sino, avisando ou lamentando o fim daquela vida que acabava antes mesmo de mostrar porque começara. 
Durante o velório pensava se qualquer vida tem que ter um motivo para começar ou para terminar, mas a única conclusão que consegui chegar naquela ocasião foi que só as nuvens são eternas. Olhava aquela enorme lua quase cheia, clareando a noite como um sol pálido, cheia de luz e significados que não conseguia alcançar, e em meio às estrelas pequenas nuvens passavam baixo e rápido levadas pelo vento, fazendo tênues sombras nas árvores que cercavam o cemitério.
Observava aquela gente, mulheres envelhecidas antes do tempo, homens de rostos graves e pele ressecada pelo sol, quase todos de costas retas e andar compassado, de uma dignidade rústica e uma solidariedade simples. Parecia-me que toda a cidade era uma família, revezando-se nos pequenos consolos para aquele momento onde palavras não dizem nada. Durante toda a noite surgia no local do velório e na praça em frente um leite quente, café, bolo ou biscoito feitos na hora, um cobertor ou uma blusa, pessoas chorando ou com o olhar perdido em alguma lembrança e vi muitas pessoas abraçadas em silêncio. 
Terminadas as rezas, fechada a igreja, caladas as vozes, acesas as velas, no cansaço imenso a lua continuava crescendo na noite fria, e aos meus ouvidos aquele vento que continuava soprando sobre a cidade adormecida parecia alguém que assovia pedindo silêncio, momento para reflexão. 
O enterro foi no fim da manhã seguinte, num horário próximo ao que, no dia anterior, foi a queda fatal. Não pude desde então deixar de definir o tempo como algo abstrato e indescritível, quando pensei que um dia era o que separava uma pessoa descer na rua em cima de uma bicicleta e descer na cova dentro de um caixão.
Durante todo o dia ficou a cidade em um torpor, com as ruas mais vazias que o habitual e as pessoas falando mais baixo, fazendo mais lentamente seus afazeres e aproveitando com mais atenção os detalhes cotidianos, no típico período em que a morte vem nos lembrar a importância e fragilidade da vida, e que a maioria de nós, por hábito ou ignorância, nos deixamos depois de algum tempo tragar pela correnteza do ritmo automático de viver  focado aos detalhes e negligente ao essencial  só atentando novamente para este fato no próximo enterro, quando recomeça o mudo ciclo de alienação. 
No fim daquela tarde o progressivo escurecimento do crepúsculo parecia refletir meu estado de espírito. Naquele momento não sabia se existia menos luz fora ou dentro dos meus olhos. Olhando para o céu, naquela imensidão de tons entre o vermelho e o amarelo, chamou minha atenção um azul de uma tonalidade que eu nunca reparara antes. Um pedaço lindo e sedutor de céu, convidando para mergulhar naquela ilha de tranquilidade e esquecer do mar revolto agitando minhas emoções.
Andei por uma rua que subia um pequeno morro e sentei-me no chão, próximo a um formigueiro, contemplando de cima a pequena cidade. Ventava forte, um vento frio que contrastava com o clima morno do verão. Olhando para aquele formigueiro, junto com o vento que sentia no corpo, foi me envolvendo de uma forma traiçoeira e implacável, como o abraço de um inimigo, a percepção de como são minúsculas as pessoas, com suas tristezas e alegrias.
Parecia que aquele vento arrancava de mim uma inocência, jogando-a para o alto e longe no céu daquela tarde, em um passado agora, mesmo que próximo, inexoravelmente perdido, deixando pela primeira vez em minha forma de perceber o mundo uma desagradável consciência da fragilidade da minha vida e da futilidade dos meus desejos perante a indiferença dos fatos.
Sentia-me como uma daquelas formigas que passava ao meu lado em sua pressa de ir para o formigueiro, sem saber se trabalha para viver ou vive para trabalhar, sem consciência do que existe além da sua limitada capacidade de visão e compreensão, ignorante de si mesma e do que a cerca, sem enxergar que a qualquer momento eu poderia levantar o pé e esmagá-la.
Olhava a cidade e sentia o vento forte, indiferente à vida e à morte...

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