Sempre fora uma pessoa introvertida e à medida que os anos passavam foi fechando-se dentro de si cada vez mais. Morava em um apartamento, nem grande, nem pequeno, em um pequeno prédio espremido entre outros prédios um pouco maiores, em uma região da cidade que no passado foi considerada nobre e gradativamente foi-se desvalorizando, tornando-se cada vez mais melancólica e esquecida.
Apesar do abafamento causado pela ausência da circulação de ar – característica do lugar – acostumara-se a morar neste local, pois tudo que precisava para viver não estava a mais de quatro quarteirões de distância, evitando grandes esforços. No entanto, incomodava-lhe consideravelmente, o barulho variado e alto que vinha da rua até altas horas da noite, o ar carregado dos escapamentos dos carros e as calçadas sempre cheias de pessoas que lhe pareciam feias e hostis.
Por diversas vezes já pensara em mudar-se daquele lugar, mas por comodismo adiava a decisão para um futuro que nunca chegava. O apartamento em que vivia tinha um ar ainda mais estagnado que o ar abafado da rua. Os móveis antigos, da época de seus avós, disputavam o congestionado espaço dos cômodos com eletrodomésticos modernos e a decoração comprada por seus pais enquanto estes ainda eram vivos.
A leitura era sua ponte com o mundo. Paixão antiga, cultivada com carinho e sem maiores pretensões desde os tempos de escola, onde tinha dificuldade de se relacionar com pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo e até mesmo com o próprio sexo. Com a soma de cada pequena decepção ao longo da vida foi adquirindo mais gosto pelas palavras do que pelas pessoas, afinal as folhas estavam sempre ali, aguardando submissas e pacientes, sem críticas nem cobranças.
Sem se dar conta passou de uma posição apenas passiva para ativa no seu pacto com a arte de escrever. Primeiro depositava seus sentimentos e ideias em folhas de cadernos, que guardava com um cuidado onde existia um misto de vaidade e medo. Depois, deixando-se conduzir pela modernidade, comprou um computador e passava horas digitando suas aventuras fictícias, decepções e desejos. As folhas e telas em branco sempre tiveram um estranho charme sedutor, jardim de possibilidades onde os únicos limites eram os de suas capacidades. Ambiente que se transmutava de deserto estéril de ideias em nuvens fluidas de inspiração e vice-versa.
Não possuía o que se pode chamar de biblioteca, uma vez que não reservara nenhum cômodo em seu apartamento unicamente com a finalidade de acolher seus amigos livros. O que possuía era uma improvisada estante de tijolos e tábuas de madeiras que ocupava uma parede de seu quarto e, depois do falecimento de seus pais, como passara a morar só, mudou-se para o quarto destes, desmontou sua antiga cama e com mais uma estante improvisada ocupou duas paredes de seus antigo quarto.
Comprava revistas e livros novos nas bancas perto de onde morava, mas o que realmente falava fundo à sua alma era o que comprava em lojas de usados. Identificava-se um pouco com os livros e revistas descartados e esquecidos, com seus cheiros peculiares e suas pequenas imperfeições. Sentia-se também vítima do abandono e da incompreensão do valor que possuía. Gostava de passar horas garimpando nos "sebos" pequenos tesouros a preços mais acessíveis, e não conseguia conter uma ponta de indignação e rancor contra aquelas pessoas que descartavam livros ou revistas com determinadas figuras com excelente qualidade de impressão, uma edição com comentários adicionais do autor ou outras pequenas diferenciações. Livros maiores, com capas duras e grossas, transmitiam-lhe uma particular sensação de segurança.
Às vezes, por falta de espaço nas estantes, resolvia fazer uma triagem na sua coleção de livros e escolhia alguns para vender, pois até seu antigo guarda-roupa já se encontrava quase que totalmente tomado por livros e revistas que não cabiam nas lotadas estantes. Outras vezes resolvia que iria organizar seus livros por ordem alfabética dos títulos, mas, passado algum tempo, decidia que seria melhor arrumá-los de acordo com os nomes do autor, só para depois reorganizá-los por ordem alfabética. Resistia à tentação de reorganizá-los por ordem cronológica de compra.
Não era raro arrepender-se de ter vendido um determinado livro e ir às lojas para comprá-lo novamente. Por duas ou três vezes adquirira exatamente o mesmo livro que havia vendido tempos atrás, e sentia-se como que redimindo a injustiça cometida com um antigo amigo. E assim os meses passavam transformando-se em anos.
Na mocidade fizera o possível para ter uma vida social. Chegou a ter rápidos casos amorosos superficiais – que raramente duravam mais do que seis meses – e um pequeno círculo de amigos, que se estagnou com o passar do tempo e diminuía a cada mudança por trabalho ou casamento, perdendo finalmente a afinidade e o contato com os poucos que restaram. Vivia de uma pensão deixada pelo pai que lhe permitia uma vida simples e confortável.
Além da leitura, passava o tempo no computador, ouvindo música ou vendo televisão. Ocasionalmente tinha vontade de ficar olhando as pessoas pela janela, mas se incomodava com o fato dos vizinhos dos prédios em volta observar sua intimidade.
Comparando a vida com os livros considerava a sua mal estruturada, amargurada e tediosa, com personagens ruins e cenários caóticos. Além disso, o enredo era de gosto duvidoso. Já nos seus livros tudo fluía de forma muito mais interessante. Mesmo porque, depois de algum tempo, só lia os livros que já conhecia e gostava. Estórias inteiras e os nomes de todos os personagens foram decorados. Sentia-se com uma vaga intimidade com muitos deles, como se fossem amigos de mocidade que há muito não se visitassem. Possuía muito mais livros do que tinha capacidade de ler e não estava com disposição para perder tempo em novas leituras que poderiam ser, também elas, uma decepção. De decepcionante já bastava a sua vida!
Sentava-se na cama ou no sofá, de preferência em algum canto longe da rua – onde o barulho do trânsito chegava como um som cada vez mais abafado e distante – e mergulhava naquele mundo conhecido e tranquilo.
Um dia o síndico bateu sua campainha, afinal havia três meses que o condomínio estava atrasado e ninguém via, fazia tempo, a pessoa que morava naquele apartamento. Ninguém respondeu e outros três meses se passaram com visitas esporádicas do síndico à sua porta, sempre recebido com o mesmo silêncio. Foi convocada uma reunião do condomínio para decidir o que fariam, afinal, a pessoa, que morava só, poderia estar morta devido a uma doença ou um assalto, ou poderia ter se mudado ou viajado e não informara ninguém, e, neste caso medidas judiciais precisariam ser tomadas.
Chamaram a polícia informando sobre o caso e, na presença do síndico e mais duas testemunhas, os policiais arrombaram a porta do apartamento. Tudo estava em ordem, não demonstrando sinais de luta; todas as janelas estavam fechadas, com exceção da janela do quarto onde ficavam as estantes com os livros. O único acesso ao apartamento era a porta por onde entraram e que estava com as chaves na fechadura pelo lado de dentro. Revistaram todos os cômodos e todos os armários, onde foram encontradas, além de livros e cadernos, duas malas e muitas roupas, portanto a hipótese da viagem estava descartada. Alguns poucos livros estavam no chão da sala e do quarto com a janela aberta e as frutas na geladeira apodrecidas devido ao tempo que ficaram guardadas. A luz e a água haviam sido cortadas por falta de pagamento e, mediante pedido da polícia, semanas depois foi constatado que a conta no banco não tinha nenhum saque fazia seis meses, onde o dinheiro da pensão se acumulava.
Era um mistério, a pessoa simplesmente havia sumido.
O condomínio concordou em pagar uma nova fechadura para a porta arrombada, gasto este que seria indenizado pela pessoa quando esta retornasse. Mas o tempo passou e não houve retorno, e como o valor do condomínio em atraso aumentava, pediram autorização na justiça para descontar da conta bancária onde a pensão se acumulava a cada mês, o valor devido ao condomínio. O síndico se sentiu na obrigação de procurar algum parente ou amigo mais próximo, mas não encontrou ninguém e, após três meses, desistiu.
O apartamento continua vazio até hoje, do mesmo jeito que foi encontrado pelos policiais, com suas contas pagas e suas janelas fechadas, móveis empoeirados e ar estagnado. Pequeno mundo isolado onde existe um livro de romance com capa grossa jogado no chão. Neste romance vive uma pessoa feliz. Mora numa casa de campo, com muito sol e uma brisa suave e constante que balança as folhas das muitas árvores que existem em volta. Sabe exatamente o que vai acontecer, pois já leu este romance muitas vezes. O tempo é usado para acompanhar a vida dos seus personagens queridos, seus amigos. Nada lhe surpreende ou ameaça e sabe sempre o que deve ou não fazer e dizer para agradar aos outros.
Lá está agora, tranquilamente na cadeira da varanda com um livro sobre as pernas, refúgio num mundo ideal, protegido por grossas capas que não deixam passar o som de carros ou batidas na porta, que vinham de longe.
Apesar do abafamento causado pela ausência da circulação de ar – característica do lugar – acostumara-se a morar neste local, pois tudo que precisava para viver não estava a mais de quatro quarteirões de distância, evitando grandes esforços. No entanto, incomodava-lhe consideravelmente, o barulho variado e alto que vinha da rua até altas horas da noite, o ar carregado dos escapamentos dos carros e as calçadas sempre cheias de pessoas que lhe pareciam feias e hostis.
Por diversas vezes já pensara em mudar-se daquele lugar, mas por comodismo adiava a decisão para um futuro que nunca chegava. O apartamento em que vivia tinha um ar ainda mais estagnado que o ar abafado da rua. Os móveis antigos, da época de seus avós, disputavam o congestionado espaço dos cômodos com eletrodomésticos modernos e a decoração comprada por seus pais enquanto estes ainda eram vivos.
A leitura era sua ponte com o mundo. Paixão antiga, cultivada com carinho e sem maiores pretensões desde os tempos de escola, onde tinha dificuldade de se relacionar com pessoas do sexo oposto, do mesmo sexo e até mesmo com o próprio sexo. Com a soma de cada pequena decepção ao longo da vida foi adquirindo mais gosto pelas palavras do que pelas pessoas, afinal as folhas estavam sempre ali, aguardando submissas e pacientes, sem críticas nem cobranças.
Sem se dar conta passou de uma posição apenas passiva para ativa no seu pacto com a arte de escrever. Primeiro depositava seus sentimentos e ideias em folhas de cadernos, que guardava com um cuidado onde existia um misto de vaidade e medo. Depois, deixando-se conduzir pela modernidade, comprou um computador e passava horas digitando suas aventuras fictícias, decepções e desejos. As folhas e telas em branco sempre tiveram um estranho charme sedutor, jardim de possibilidades onde os únicos limites eram os de suas capacidades. Ambiente que se transmutava de deserto estéril de ideias em nuvens fluidas de inspiração e vice-versa.
Não possuía o que se pode chamar de biblioteca, uma vez que não reservara nenhum cômodo em seu apartamento unicamente com a finalidade de acolher seus amigos livros. O que possuía era uma improvisada estante de tijolos e tábuas de madeiras que ocupava uma parede de seu quarto e, depois do falecimento de seus pais, como passara a morar só, mudou-se para o quarto destes, desmontou sua antiga cama e com mais uma estante improvisada ocupou duas paredes de seus antigo quarto.
Comprava revistas e livros novos nas bancas perto de onde morava, mas o que realmente falava fundo à sua alma era o que comprava em lojas de usados. Identificava-se um pouco com os livros e revistas descartados e esquecidos, com seus cheiros peculiares e suas pequenas imperfeições. Sentia-se também vítima do abandono e da incompreensão do valor que possuía. Gostava de passar horas garimpando nos "sebos" pequenos tesouros a preços mais acessíveis, e não conseguia conter uma ponta de indignação e rancor contra aquelas pessoas que descartavam livros ou revistas com determinadas figuras com excelente qualidade de impressão, uma edição com comentários adicionais do autor ou outras pequenas diferenciações. Livros maiores, com capas duras e grossas, transmitiam-lhe uma particular sensação de segurança.
Às vezes, por falta de espaço nas estantes, resolvia fazer uma triagem na sua coleção de livros e escolhia alguns para vender, pois até seu antigo guarda-roupa já se encontrava quase que totalmente tomado por livros e revistas que não cabiam nas lotadas estantes. Outras vezes resolvia que iria organizar seus livros por ordem alfabética dos títulos, mas, passado algum tempo, decidia que seria melhor arrumá-los de acordo com os nomes do autor, só para depois reorganizá-los por ordem alfabética. Resistia à tentação de reorganizá-los por ordem cronológica de compra.
Não era raro arrepender-se de ter vendido um determinado livro e ir às lojas para comprá-lo novamente. Por duas ou três vezes adquirira exatamente o mesmo livro que havia vendido tempos atrás, e sentia-se como que redimindo a injustiça cometida com um antigo amigo. E assim os meses passavam transformando-se em anos.
Na mocidade fizera o possível para ter uma vida social. Chegou a ter rápidos casos amorosos superficiais – que raramente duravam mais do que seis meses – e um pequeno círculo de amigos, que se estagnou com o passar do tempo e diminuía a cada mudança por trabalho ou casamento, perdendo finalmente a afinidade e o contato com os poucos que restaram. Vivia de uma pensão deixada pelo pai que lhe permitia uma vida simples e confortável.
Além da leitura, passava o tempo no computador, ouvindo música ou vendo televisão. Ocasionalmente tinha vontade de ficar olhando as pessoas pela janela, mas se incomodava com o fato dos vizinhos dos prédios em volta observar sua intimidade.
Comparando a vida com os livros considerava a sua mal estruturada, amargurada e tediosa, com personagens ruins e cenários caóticos. Além disso, o enredo era de gosto duvidoso. Já nos seus livros tudo fluía de forma muito mais interessante. Mesmo porque, depois de algum tempo, só lia os livros que já conhecia e gostava. Estórias inteiras e os nomes de todos os personagens foram decorados. Sentia-se com uma vaga intimidade com muitos deles, como se fossem amigos de mocidade que há muito não se visitassem. Possuía muito mais livros do que tinha capacidade de ler e não estava com disposição para perder tempo em novas leituras que poderiam ser, também elas, uma decepção. De decepcionante já bastava a sua vida!
Sentava-se na cama ou no sofá, de preferência em algum canto longe da rua – onde o barulho do trânsito chegava como um som cada vez mais abafado e distante – e mergulhava naquele mundo conhecido e tranquilo.
Um dia o síndico bateu sua campainha, afinal havia três meses que o condomínio estava atrasado e ninguém via, fazia tempo, a pessoa que morava naquele apartamento. Ninguém respondeu e outros três meses se passaram com visitas esporádicas do síndico à sua porta, sempre recebido com o mesmo silêncio. Foi convocada uma reunião do condomínio para decidir o que fariam, afinal, a pessoa, que morava só, poderia estar morta devido a uma doença ou um assalto, ou poderia ter se mudado ou viajado e não informara ninguém, e, neste caso medidas judiciais precisariam ser tomadas.
Chamaram a polícia informando sobre o caso e, na presença do síndico e mais duas testemunhas, os policiais arrombaram a porta do apartamento. Tudo estava em ordem, não demonstrando sinais de luta; todas as janelas estavam fechadas, com exceção da janela do quarto onde ficavam as estantes com os livros. O único acesso ao apartamento era a porta por onde entraram e que estava com as chaves na fechadura pelo lado de dentro. Revistaram todos os cômodos e todos os armários, onde foram encontradas, além de livros e cadernos, duas malas e muitas roupas, portanto a hipótese da viagem estava descartada. Alguns poucos livros estavam no chão da sala e do quarto com a janela aberta e as frutas na geladeira apodrecidas devido ao tempo que ficaram guardadas. A luz e a água haviam sido cortadas por falta de pagamento e, mediante pedido da polícia, semanas depois foi constatado que a conta no banco não tinha nenhum saque fazia seis meses, onde o dinheiro da pensão se acumulava.
Era um mistério, a pessoa simplesmente havia sumido.
O condomínio concordou em pagar uma nova fechadura para a porta arrombada, gasto este que seria indenizado pela pessoa quando esta retornasse. Mas o tempo passou e não houve retorno, e como o valor do condomínio em atraso aumentava, pediram autorização na justiça para descontar da conta bancária onde a pensão se acumulava a cada mês, o valor devido ao condomínio. O síndico se sentiu na obrigação de procurar algum parente ou amigo mais próximo, mas não encontrou ninguém e, após três meses, desistiu.
O apartamento continua vazio até hoje, do mesmo jeito que foi encontrado pelos policiais, com suas contas pagas e suas janelas fechadas, móveis empoeirados e ar estagnado. Pequeno mundo isolado onde existe um livro de romance com capa grossa jogado no chão. Neste romance vive uma pessoa feliz. Mora numa casa de campo, com muito sol e uma brisa suave e constante que balança as folhas das muitas árvores que existem em volta. Sabe exatamente o que vai acontecer, pois já leu este romance muitas vezes. O tempo é usado para acompanhar a vida dos seus personagens queridos, seus amigos. Nada lhe surpreende ou ameaça e sabe sempre o que deve ou não fazer e dizer para agradar aos outros.
Lá está agora, tranquilamente na cadeira da varanda com um livro sobre as pernas, refúgio num mundo ideal, protegido por grossas capas que não deixam passar o som de carros ou batidas na porta, que vinham de longe.
Baseado na crônica “O homem sitiado”, do livro “O Nariz & Outras Crônicas” de Luis Fernando Veríssimo.
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