sábado, 15 de fevereiro de 2020

Riquistão

Amoral Neto, o repórter, filho de Amoral Filho, o banqueiro, é alguém contra a hipocrisia do politicamente correto! Sua utopia é separar os ricos dos pobres, porque esse negócio de misturar raças diferentes não dá coisa que preste. Afirma ele não ser preconceituoso, apenas realista, que é só imaginar o resultado do cruzamento de uma girafa com um pudle para ver que cada macaco deve ficar no seu galho e cada galho na sua árvore.   
Daí foi um caminho curto à ideia de criar um refúgio paradisíaco para si e para os iguais a si. 

Onde seria? Na África nem pensar! Há séculos as principais atividades lá são as guerras civis, com seus massacres, escravização uns dos outros, estupros e saques. Toda hora iria aparecer alguém com aquele ar de coitadinho – e uma pedra, pedaço de pau ou facão na mão – para pedir uma xícara de açúcar, uma tonelada de arroz, caminhões com carne, carregamentos de remédios ou algo parecido. Como seria imprudente negar algo para esse tipo de gente, o relacionamento seria desgastante para o bolso e para a paciência, pois a fome morta no almoço já ressuscitou na janta, e seria uma caridade eterna, aquele ajudar a quem não se ajuda. 

Não se poderia fazer como os judeus, que são ricos, comprar um pedaço de terra e fundar ali uma nação boçal e soberana? Os judeus, com excesso de dinheiro tiveram escassez de juízo e compraram um terreno mal localizado, com uma péssima vizinhança – barraqueira e vingativa – que vive jogando pedras e mísseis para confortar suas insatisfações, e acabou desvalorizando o investimento e perdendo o glamour do local no meio de tanta baixaria.

Uma ilha no Caribe seria o local óbvio... Tentou comprar Cuba e pretendia usar os nativos como empregados (afinal alguém tem que meter a mão na massa para o negócio funcionar). Ademais, a população local já está acostumada e até parece achar charmoso viver no limite da miséria; seria até uma caridade para aquela ilha-prisão. Mas os tiranossauros rex do governo não aceitaram o negócio pois preferiam continuar mastigando a própria mixaria do que lamber a prosperidade alheia.

Amoral não desistiu de seu sonho dourado a ouro e mandou construir uma ilha/condomínio no mar internacional do Caribe, que batizou de Riquistão (para os que ricos estão). 

Como se sabe, ao invés de reunir os amigos, rico gosta mesmo é de impressionar e humilhar os rivais. Na ilha seriam permitidas apenas casas com no mínimo de três andares, vagas para cinco carros, três lanchas e dois helicópteros. Uma área de lazer com campos de golfe, quadras de tênis, termas e restaurantes internacionais (tudos nos plurais) faria o papel de polo confraternizador. Para refrear o pendor exibicionista tão comum aos endinheirados, só seriam permitidas festas na ilha em uma única área, Le Lieu (O Lugar, em francês), com reserva antecipada paga em ouro onde os anfitriões poderiam desperdiçar recursos sem remorso, que isso é sentimento pequeno-burguês.

A ilha foi erguida com a base de pedras vindas exclusivamente das cordilheiras do Tibete (devidamente abençoadas, pedra a pedra, por monges de aluguel), a terra foi trazida da Europa (para se manter o pedigree de onde se pisa) e as areias das praias – habitat natural dos moradores da ilha – foram importadas da Califórnia e Ibiza, para evitar possíveis contágios com doenças pobres, além serem as únicas à altura, em status e tradição, de ter contato com os pés desnudos dos riquistãomesmos (nomeação dos moradores de Riquistão).

Pronta a ilha, com seus portos e aeroportos, bancos e boates, mimos e consumismos, começou o seleto processo de escolha dos afortunados. Só poderiam morar lá aqueles que, de tão podres de ricos, já estariam mesmo até em decomposição (física, moral, ou ambas), obviamente mantendo as aparências com o que há de mais moderno e oneroso.
Afirma Amoral que nem heróis nem vilões, os ricos são apenas pobres com dinheiro, por sorte ou uma dura e constante luta para chegar lá... Não se deve discriminar os ricos, pois isso além de ser feio, pode render um processo judicial com no mínimo três advogados e um juiz muito bem pagos para resolver o caso. 
O chique para os riquistãomesmos é falar em língua estrangeira para parecer que se possui uma cultura que não se tem. Afinal de contas, depois de dar um duro danado para possuir dinheiro, ainda tem que possuir cultura? Aí já é abuso! O negócio é possuir o fundamental, o resto se acerta por si mesmo.

Mas como toda utopia tem uma patologia, a perfeição de Riquistão não suportou por muito tempo a ostentação! Assim como entre os comunistas há aqueles que querem ser mais iguais do que outros, os endinheirados têm intolerância a não sentirem-se superiores aos demais e criou-se uma segregação com base na qualidade (antiguidade) e quantidade (valor líquido descontadas as dívidas não pagas) das fortunas. 
Das batalhas judiciais na guerra de vaidades que se seguiu surgiu o Alto Riquistão e o Baixo Riquistão, com as fronteiras vigiadas por exércitos de seguranças privadas, fofoqueiros interesseiros e comunicadores patrocinados. 
Lá estão agora os autodenominados altoriquistãos sentindo-se incomodados com a presença dos denominados baixoriquistãos, que não se reconhecem como tal e, inconformados, estão na articulação da patrocinação daquela que pretendem ser A Revolução para Humilhar Todas as Revoluções (tudo em maiúsculo mesmo, que é para mostrar a que vieram), onde pretendem provar do que o dinheiro é capaz.

O clima está quente e tenso no Riquistão, demandando muito ar condicionado e massagens. Enquanto isso, Amoral Neto já está articulando a construção de um condomínio na Lua, para onde pretende se mudar, aliviar o peso dos problemas e apreciar os problemas dos outros de cima.

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