sábado, 15 de fevereiro de 2020

Sensações

Desde cedo em sua existência fora uma pessoa com os olhos doces, a boca azeda e a alma amarga. Muitos gostos para uma mesma pessoa! Combinação que facilmente termina mal.
Talvez devido às lições da natureza maçante de seus pais – seres desprovidos de lirismo e acomodados em uma mansidão bovina – sempre lhe faltara a iniciativa de aproveitar a vida, orientando-se por leis de economia de ações e emoções. Não desfrutava com naturalidade das felicidades e confortos materiais, nem conseguia sofrer profundamente por algo. Podia-se dizer que possuía uma alma aleijada.
Acostumara-se a cultivar a dor pelas aparências e, gostando apenas medianamente de sua família – mais por convenção cultural que por espontaneidade emocional – vivia em um entorpecimento de um tédio morno e pesado. 
Nutriu durante muito tempo uma luta surda e agressiva entre um intelecto aguçado e mordaz com um forte verniz social, o que lhe causava uma desorientação incômoda e constante sobre suas opiniões a seu próprio respeito e sobre o mundo.
Sua posição era talvez a mais afortunada na escala social, começando acima da linha onde termina a pobreza e terminando abaixo da linha em que as convenções começam a prejudicar os sentimentos naturais, e as exigências das modas não se contentam apenas com o suficiente. Mesmo assim, sua sensação é que tinha uma vida cheia de vazios. 
Superara algumas deficiências fundamentais apenas para falhar no que era simples e cotidiano. Considerava-se um típico exemplo de uma geração com muita informação e pouca formação, que possuía um oceano de conhecimentos com dois dedos de profundidade, perdendo-se constantemente no ritmo do grupo, sendo incapaz de perceber e viver sua própria essência. 
Desejando uma vida menos consumista e mais consumada, um dia, após acordar e olhar longamente pela janela do quarto, resolveu que mudaria. Viveu um daqueles raros momentos em que tudo parece simples e claro.
Entendeu que ao evitar o ataque externo, tinha também limitado o crescimento interno. Continuava indo ao trabalho, vendo televisão, conversando com os amigos e cuidando dos filhos, mas tudo isso acontecia de forma automática, sem grandes alegrias ou frustrações. O preço para manter o máximo possível sob controle foi anestesiar os sentimentos e sentidos, tornando-se uma visita em sua própria vida!
Cansara de sentir o mundo por um prisma onde o sucesso do outro é humilhação pessoal. Decidiu que não mais se relacionaria com pessoas que carregam seus próprios problemas com tanta dificuldade que não têm ânimo ou capacidade para aliviar os outros de um pouco de suas cargas. Teve a certeza da sensação de que os dramas pessoais são apenas questões a superar ou esquecer, e que a grande miséria é ter a alma mutilada pela acidez.
Compreendeu que no caminho que se faz do berço ao túmulo, encontrava-se num momento em um ponto onde estava era tão distante da juventude quanto da velhice, e que a vida pode ser boa desde que saibamos torná-la digna de ser vivida. Constatou, numa súbita iluminação, que em uma jornada em que os descaminhos são tão atraentes quanto os caminhos, o fundamental é parar, conhecer quem se é e o que se quer e, só depois, seguir em frente.
Com menos certezas do que nunca teve, sentiu uma revigorante mistura de sensações com os futuros (dis)sabores e (des)gostos que poderia ainda sentir em sua vida.

Imagem: https://br.pinterest.com/sbazote/imagens-mensagens 

Com o sentido do paladar, somos capazes de distinguir quatro sabores básicos: doce, salgado, amargo e azedo. Com o sentido do espírito, experimentamos muitos outros gostos: alegria, tristeza, ânimo, desânimo, etc., numa grande rede de possibilidades e energias que se complementam ou anulam, (des)integrando a vida.

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