sábado, 15 de fevereiro de 2020

Honestidade (in)voluntária

Ernesta Alva é uma política que não rouba. Não que ela não queira, causa-lhe até frustração sua honestidade compulsória, por força de sua covardia ou falta de sorte. O que lhe ocorre é que falta a malícia para estar no local certo com as pessoas certas para desenvolver seus desejos incorretos, além da sorte não favorecer sua falta de virtude.

Primeiramente foi eleita vereadora na cidade onde nasceu por conta de seus projetos interessantes para a comunidade – no íntimo acreditava que não há problema em se servir do povo se está servindo ao povo. Contratou como assessor um amigo, inteligente e motivado em fazer a diferença.
Por conta de seus populares projetos foi indicada por seu partido, o TPM (Trabalho, Pátria e Moral), para fiscalizar a Secretária de Obras, cargo que aceitou com entusiasmo imaginando que rolariam frequentes propinas. Realmente não demorou muito e um empresário local oferecia ao secretário um "agrado" extra se vencesse uma licitação que ainda seria publicada. Ao ser informada pelo secretário de obras de tal proposta, como quem pede a bênção, Ernesta foi procurar o empresário para deixar claro que sabia da transação e esperava sua parte, mas o fez com estas palavras dúbias:
– O secretário de obras me contou de sua proposta. O senhor acha que é assim que se age, não está faltando nada? 
Seu assessor e amigo levado por ela para servir como "laranja" depois de acertada a negociata, sem que disso soubesse e crédulo na fama de honestidade da amiga vereadora, não conteve seus ânimos e disse o que tinha certeza seria a próxima fala dela (só que não):
– Vergonha na cara!
Criou-se um instantâneo clima de constrangimento e tensão! O empresário preocupado com prejuízos e possível prisão, afirmou que tal abono financeiro não seria um suborno, mas uma gratificação que seria usada conforme o secretário e a vereadora achassem melhor. Diante do olhar de súplica do empresário e do olhar de reprovação que seu amigo e assessor lhe dirigia – que acreditava ser para si, mas era um pacto unilateral de condenação pela confissão de tentativa de corrupção por parte do empresário – Ernesta, sem saber o que fazer e sem ter o sangue frio dos indecorosos, disse a única coisa que lhe parecia viável naquele momento: 
– Esta conversa termina aqui!
E já virou saindo andando apressadamente, passos largos e firmes, movida pela aflição e desejo de se afastar daquela situação onde não sabia o que fazer ou dizer, seguido por seu amigo assessor, que entendeu a frase e a saída como um ato de repúdio daquela desonestidade tão corriqueira no cotidiano político brasileiro.
Ao chegar ao seu gabinete, Ernesta, ao mesmo tempo envergonhada e irritada com o amigo, achou-se na obrigação de reprovar tal situação. Olhou nos olhos de seu assessor, e procurando palavras que não lhe vinham, limitou-se a dizer: "– Impressionante!", enquanto balançava a cabeça negativamente, com sincera reprovação por ter perdido aquela oportunidade desejada, mas que foi interpretada pelo assessor como reprovação pela justificativa de tentativa de suborno por parte do empresário. Ernesta, ainda procurando, sem sucesso, palavras que descrevessem com exatidão a situação, emenda um "– Vida que segue, vamos ao trabalho!", sentando-se e pegando um papel qualquer em cima de sua mesa, olhando-o com dissimulado ar grave, sem enxergar o que nele havia, lamentando-se não ter avisado antecipadamente ao assessor – considerado naquele momento já não tão amigo – o motivo da ida dele naquele encontro. 
O assessor sai da sala e agora sozinha começa a sentir baixando a adrenalina. Anima-se ao pensar que será apenas questão de tempo até surgir outra proposta de suborno. Bastaria então ir sozinho e, sem a interferência da correção de seu assessor, garantir seu quinhão de corrupção.
O que ela não sabia é que naquele momento seu assessor contava, orgulhosamente, o ocorrido para outros assessores de vereadores e funcionários da Câmara Municipal. Antecipando-se prestimosamente, cunhou a alcunha de "Ernesta, a Honesta" que rapidamente se espalhou. Dois dias depois do acontecido, ela recebe um telefonema com felicitações do presidente nacional do partido TPM, bem como a visita, em seu gabinete, dos maiores nomes regionais do partido, elogiando o exemplo, a boa propaganda para a sigla partidária e prevendo uma promissora carreira política para "A Honesta". Como era típica de sua personalidade, fraca e influenciável, ela adorou toda esta atenção e "vestiu a camisa" da fama que lhe foi atribuída, mais por conveniência do que por convicção.

Seguindo na encenação virtuosa – motivada por temor e preguiça ao invés de qualidades louváveis – foi reeleita vereadora, com o maior número de votos naquele pleito, o que lhe valeu a nomeação para a Presidência da Câmara Municipal e premiações com menção e medalha por sua conduta inspiradora!
Sentindo-se fortalecida, juntou então coragem e ânimo para tentar realizar o antigo desejo da canalhice velhaca e, sozinha, sondou com um notório vereador corrupto em como participar num esquema de "ganhos adicionais". Este vereador, desconfiado que a abordagem tratava-se de uma cilada, desconversou e afirmou que enquanto Ernesta tivesse na Câmara Municipal tais coisas não aconteceriam, e foi dando um jeito de avisar aos seus comparsas sobre o que acreditava ser uma campanha para promover emboscadas eleitoreiras, usando denúncias e prisões em proveito próprio. Fecharam-se assim para ela as portas da esbórnia com o dinheiro público na Câmara Municipal. 
"A Honesta" não se deu por vencida e procurou empresários para lhes oferecer vantagens em troca de um ganho para si, mas era sempre precedida por sua fama de incorruptível e caçadora de desonestos, por isso não conseguiu nada além de esquivas.
Frustrada e preguiçosa deixou-se levar nos quatro anos do segundo mandato como vereadora pelos elogios e conselhos dos membros do partido, além do proativo trabalho do seu assessor, e candidatou-se ao cargo de prefeita de sua cidade, acreditando que nesse cargo aumentaria sua esfera de relacionamentos e, consequentemente, de possibilidades de suborno. Sua fama de honestidade lhe garantiu os votos necessários para o cargo e foi eleita com uma campanha que enfatizava a "moralização do público através da conduta privada" (mais uma criação de seu assessor que lhe era tão genial quanto inconveniente!).

Como prefeita, sua sina de honestidade involuntária continuava a lhe perseguir, pela mesma desconfiança e descrença com os contatos por ela feitos insinuando desejo em participar de esquemas ilegais. Resolveu então agir de forma mais incisiva e, no segundo ano de seu mandato como prefeita conseguiu, finalmente que um prefeito de uma cidade vizinha lhe oferecesse participação num esquema de corrupção com verbas do governo estadual. Para acertar os detalhes, este prefeito foi sozinho a um jantar na sua casa levando consigo alguns papéis e um computador que mostravam quem já participava do esquema e como este era realizado. Na volta deste jantar, este prefeito sofreu um acidente de carro na estrada para sua cidade, vindo a falecer. Os tais papéis e computador foram encontrados pelos policiais rodoviários federais e o esquema de corrupção foi divulgado pela imprensa, gerando uma onda de prisões, das quais ela escapou porque seu nome só seria incluído no esquema após o retorno do falecido prefeito ao "ninho de cobras", fato que não aconteceu devido ao acidente automobilístico. Perguntada sobre o motivo do jantar com o falecido Ernesta afirmou ser para firmar uma parceria na área de saúde entre os municípios, o que foi de pronto considerado verdadeiro uma vez que a cidade do falecido prefeito era polo regional de saúde, sediando diversos hospitais.
No terceiro ano de mandato, conseguiu atrair para um possível acordo de corrupção, um deputado estadual que morava numa cidade distante da sua. Para acertar os detalhes de sua participação convidou o deputado para um almoço em sua casa num domingo, e este faleceu no hotel num inexplicável refluxo naquela tarde. Desde então, Ernesta ganhou a fama de justiceira na boca miúda dos gabinetes municipais e do estado, que alegavam serem as mortes causadas por sabotagem mecânica e envenenamento por orientação daquela mulher de caráter rígido e incorruptível.
Esta fama fechou as portas para o dinheiro sujo, no entanto, ela pretende jogar uma última cartada: lançar-se à candidatura como deputada federal nas próximas eleições e confiar que a tradição do local acabe com sua incômoda virgindade de canalha. Honesta não por convicção, mas por falta de opção, segue uma carreira política ascendente e tem esperança de conseguir colocar a mão no dinheiro público, nem que para isso tenha que se tornar presidente da república.

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