sábado, 15 de fevereiro de 2020

Velho Ano Novo

Primeiro minuto de primeiro de janeiro. Sentado em meu apartamento meu olhar vaga entre a tela da televisão e as luzes dos fogos de artifício da janela. Prendo a respiração, mas não consigo prender o tempo que passa indiferente a mim e aos fatos.
O ano novo onde está? O mundo que meus olhos veem continua o mesmo de minutos atrás, do ano passado. Sinto a mesma certeza de que um dia vou morrer e que estou mais velho. O ano passado continua travestido com outra roupagem. Um único ano eterno e mutável.
Talvez devido ao clima de festa que me cerca invade-me repentinamente uma vontade de perdoar, sonhar, recomeçar; mas meu comodismo me envolve rápido e sedutor; me afundo na poltrona e na inércia.
Olho as pessoas em minha volta na sala e não consigo comungar com aquela euforia, tampouco quero permitir me deixar tragar lentamente na areia movediça do pessimismo. Sinto-me um paria exilado em um lugar onde não entendo os hábitos e os dizeres. 
Forço um sorriso que morre prematuro e digo palavras que me soam vazias. Nada como exteriorizar um otimismo inexistente para fazer do conformismo uma ilusão de independência e felicidade. Para fazer da vida algo que se gasta como dinheiro, de forma leviana, impulsiva, impensada. A felicidade está onde a colocamos, então, porquê não colocá-la perto, ao alcance da mão?
Vejo a televisão. É tempo de previsões. Haverá violência no Oriente Médio. Um ator famoso terá problemas com a carreira e uma atriz muita conhecida terá um ano decisivo em sua vida amorosa. A economia do país necessita atenção redobrada ou corre o risco de entrar em crise e na política ocorrerá um escândalo envolvendo uma pessoa próxima ao presidente. É muita desfaçatez uma pessoa dizer as mesmas coisas entra ano, sai ano, anunciando solenemente velhas novidades. Generalidades banais típicas de cigano que em sua maioria acabarão ocorrendo por simples probabilidade estatística.
Tenho a irresistível sensação que uma nova e duradoura percepção surgiu, como uma convidada indesejada e permanente, trazendo um velho ano novo, cru e realista, tirando qualquer significado especial desta data no desfile de convenções dos dias padronizados no calendário. Se eu fosse chinês ou judeu esta noite não seria de ano novo, seria mais uma de muitas, sem o revestimento convencionado pelo ambiente em que vivo. Apenas um dia atrás do outro, onde em seu meio, mais cedo ou mais tarde encontrarei o meu fim.
Eu que sempre considerei esta ocasião um tempo para arrumar a casa e alma em meio à correria do dia a dia, agora vou ter que me conformar em fazê-lo com constância. Não conseguirei mais ser como as pessoas que se alimentam de vitaminas e ilusões, num trágico cerceamento do espírito, numa canalização de sentimentos que está em repetir para si  como um mantra  que se é feliz, até se encaixar na ilusão de uma felicidade, se não perfeita, ao menos aceitável.
A solução é prolongar as horas de descanso fora das tiranias do trabalho sem sentido além do da sobrevivência. Cumprir nos dias úteis a pena diária de oito horas de afazeres e esquecê-las avidamente no fim de semana, em liberdade condicional. Parar de desejar um feliz ano novo e começar a desejar um feliz dia novo, um passo de cada vez, ao alcance da perna e da mão, da consciência e da razão.


(In)Feliz Ano Novo

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Baseado na crônica O ano que vem, do livro A Cidade Vazia” de Fernando Sabino.

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